Valdemar Caracas, de 104 anos
(Foto: Daniel Roman/Agência Diário)
Quando Valdemar Caracas, 104 anos, mudou-se para
Fortaleza, aos cinco anos de idade, os costumes e a cidade, que completa 286 anos nesta sexta-feira (13), eram bem diferentes. “Podia sentar na calçada. Quando eu era criança, eu não reunia ninguém. Eu era reunido. Menino não podia nada. Menino não podia ficar brincando na calçada, mas podia ficar conversando junto, ouvindo a conversa”, lembra sorrindo um dos homens mais velhos do Ceará.
O pai dele era empregado de um comércio em Fortaleza, que começava a fervilhar. Saiu de Pacoti, na região do Maciço de Baturité, com a família, e alugou uma casa de duas janelas no Centro de Fortaleza. “Quando a família era mais poderosa, alugava uma casa de três janelas”, afirma. A mãe, viúva, com seis filhos, casou-se de novo e teve mais sete filhos no segundo casamento, do qual Caracas é o primogênito.
Ainda na infância, Caracas lembra de quando o transporte primitivo, puxado por burros, foi substituído pelo bonde elétrico. “Ainda era para ter um daqueles que servia ao pobre. As passagens eram de um tostão, que eram 100 réis”, conta sobre o trajeto para a escola. Mas lembra que chegou a andar no transporte com o burro. “A família toda não cabia. Só cabiam cinco pessoas. Aí, a gente dividia”.
Diplomado pela escola de comércio em Fortaleza, Caracas teve a história confundida com a de Fortaleza em vários âmbitos. Foi o primeiro cronista esportivo do
Ceará, pela Ceará Rádio Clube, além de ter sido correspondente do Jornal do Brasil e do Jornal dos Sports, ambos do Rio de Janeiro. No esporte, ajudou a fundar o Ferroviário Atlético Clube, em 1933, um dos mais tradicionais clubes com sede em Fortaleza até hoje. Na ocasião, era chefe de escritório da Rede de Viação Cearense e foi também técnico do time em 1945, ano em que o Ferroviário conquistou o seu primeiro título estadual.
A política de Fortaleza também teve Valdemar Caracas como vereador eleito em 1936. Mas em 1937 foi um dos que tiveram o mandato cassado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Ainda na carreira política ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947, no Ceará. “Os costumes mudaram muito. Umas coisas melhoraram, outras pioraram”, opina.
Mesmo observando as mudanças , Caracas entende que Fortaleza “evolui, muda de lugar, de opinião, de gente, de tudo”, assim como o resto do mundo. Mas tem uma coisa que para ele não deveria mudar nunca: “leitura é a coisa mais importante da existência do homem. Meu pai era matuto de Pacoti, mas sabia ensinar, sabia corrigir. Sabia encaminhar os filhos para o destino conveniente”.
Cristiano Câmara mora atrás da catedral de Fortaleza e comenta como a paisagem no entorno mudou (Foto: André Lima/Agência Diário)
Fortaleza aos 286 anos “Progresso é morar bem, viver bem com seu vizinho, ter a solidariedade humana”.
Falando dos tempos atuais, o bancário aposentado Cristiano Câmara, 76 anos, reclama dos “espigões”, dos “quadrados artificiais” e do trânsito caótico que agora estrangula sua rotina na travessa Baturité, no centro da cidade, um minúsculo pedaço da Fortaleza antiga. “Fortaleza está se tornando uma espécie de São Paulo tupiniquim. Para depois ficarem dizendo que a qualidade de vida piorou. E piorou mesmo”.
Progresso é morar bem, viver bem com seu vizinho"
Cristiano Câmara
Câmara mora atrás da catedral de Fortaleza, onde naqueles 150 metros os vizinhos ainda passam o açúcar por cima do muro. “Uma das coisas que constatei foi a crescente falta de solidariedade. Você não tem mais contato com o vizinho”.
Em meio à mudança de paisagem no entorno, a casa em que mora desde que nasceu tem jardim, varanda, quintal e uma árvore de 92 anos, um benjamim plantado pela mãe. Foi lá também onde criou os filhos e vive com a esposa, Douvina, 74 anos, e papagaia Rebeca. “Meus netos são criados em apartamento, naquela agonia. E quando chegam aqui ficam loucos. Sobem na árvore. Você sente o contato com a natureza”, afirma.
Para ele, apenas na periferia de Fortaleza ainda se pode ter esse contato com a natureza e ter essa vivência de comunidade. “Mas o pobre teve a cabeça feita para morar em um cubículo também, coitadinho”.
Câmara recorda que onde hoje está localizado o mercado central de Fortaleza, existiam casas bicentenárias. “Uma delas era do meu avô, que era pai de Dom Helder Câmara (arcebispo de Fortaleza indicado para o Nobel da Paz). Meu pai era o mais velho. Era um quintal só”.
A casa foi substituída pelo novo prédio, mas as memórias, fotografias, quadros, um relógio da década de 1930 e outros objetos ele guarda em sua casa.. “Família tradicional, metida a besta (risos). Hoje, se você perguntar ao jovem como era a casa do avô, ele nem sabe. A pessoa sem história é ave sem ninho, sem rumo”.
Em sua mocidade, na década de 1950, ele recorda que o lazer era diferente. “A gente era feliz no nosso entorno. Era no próprio dia a dia. Tinha praia, tinha cinema, a praça, o Passeio Público”. Na infância, década de 1940, a liberdade das brincadeiras na rua eram o contraponto dos limites dos pais. “A rua era o paraíso. Hoje, as crianças não têm essa liberdade, são estressadas. Os pais também não podem mais botar de castigo. Mas isso é família desajustada. A lei é do bem querer”, defende.
Mas engana-se quem pensa que Cristiano Câmara vê apenas o lado ruim da contemporaneidade de Fortaleza. “Eu sou mesmo que criança. Eu adoro shopping, porque eu não conhecia. É uma porção de bodeguinhas, uma em cima da outra”, disse. Mas argumenta que o shopping de hoje é criação de 3,5 mil anos atrás, quando a capital cearense nem existia ainda.fonte G1 CE/camocim belo mar blog