Quase dois mil anos após a morte, Jesus Cristo é mais celebrado pelo sacrifício no calvário que pela sua vitória mais gloriosa, a ressurreição. O Jornal O povo tenta entender por que isso acontece.
Se lhe fosse perguntado, caro leitor, qual a primeira imagem de Jesus Cristo que lhe vem à mente seriam grandes as chances de sua resposta ser a do mártir, com a cabeça coroada por espinhos, chagas abertas, agonizando na cruz.
Na verdade, até hoje esta é a mais icônica das representações cristãs. É a cruz o que está nas paredes sinalizando que naquele ambiente se professa a fé em Cristo. É o crucifixo o adereço que orna pescoços em busca da proteção divina. É a Sexta-Feira da Paixão a data maior da Semana Santa, aquela que todos se esforçam em guardar. Enfim, é ao calvário que costumamos nos apegar e a recorrer quando o infortúnio e o medo nos assaltam.
Essa valorização extrema do sacrifício, do sofrimento, até não causaria estranhamento se, dentro da liturgia cristã, ele fosse um fim, ou o fim. Não é. É um meio, uma parte. Justamente a que prepara e antecede a maior demonstração de glória do Filho de Deus, a sua vitória contra a morte, a sua ressurreição.
“Parece que o pessoal quando lia o Evangelho esquecia que tinha mais duas ou três páginas para ler depois da crucificação e ficava parado lá, no sepulcro. Não chegava à Ressurreição”, comenta, bem-humorado, o padre Hermano Allegri, diretor da Agência de Informação Frei Tito para América Latina (Adital).
Um rápido passeio pelas manifestações artísticas que têm Jesus Cristo como tema dá uma possível dimensão de quão pouco afeitos somos à celebração de seu retorno à vida, ao tempo em que nos esforçamos em retomar sua dor.
Desde algumas das mais célebres pinturas renascentistas, passando pelas esculturas sacras até encenações teatrais ou cinematográficas, na maioria das vezes o foco é o flagelo, a morte. Raras são as exceções em que se dedicam à ressurreição de Jesus.
Em uma comparação possível, seria como se entre os mistérios da Fé Católica evocados durante a reza do Rosário os cinco que integram o grupo dos Mistérios Dolorosos (da agonia de Jesus no horto até a sua crucificação) fossem mais relevantes que os chamados Gloriosos (que incluem sua ressurreição e ascensão aos céus).
VITÓRIA
“A gente não quer diminuir esse aspecto da morte. Jesus foi morto. Ele não simplesmente morreu, foi mais que isso. Ele foi condenado como um malfeitor, crucificado entre dois ladrões. Ninguém vai tirar a importância desta parte”, pontua o padre Lino Allegri, da Pastoral do Povo de Rua. “Mas a resposta que Deus deu não foi de derrota, foi de vitória, que é a Ressurreição. Se Cristo não tivesse ressuscitado nossa fé seria inútil, seria vã, é São Paulo quem diz isso”.
“O que nos salva é a morte e a ressurreição de Cristo. Os dois. A morte não é uma boa notícia, nunca foi nem nunca será. Morte é destruição. A novidade é que a morte foi vencida! Esta é que é a grande boa notícia que os seguidores de Jesus anunciam”, completa.
O pensamento de padre Lino encontra diálogo fluente na fala do padre Sartorel, professor da Faculdade Católica e coordenador do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi). “Nossa fé se fundamenta na ressurreição. Não é em alguém que morreu e ficou no sepulcro, mas em alguém que morreu e ressuscitou, fonte de vida nova, de criação e recriação. Isso é muito importante lembrar. Porque é a partir deste fato que nós vivemos nossa fé”, argumenta.
Mas em sendo a fé na ressurreição de Cristo - e, por consequência, também na daqueles que a Ele seguem -, o sustentáculo do Cristianismo, de onde vem esta preferência acentuada pela Paixão?
A resposta está no passado da própria Igreja Católica, vários séculos atrás, de acordo com o padre Lino Allegri. “Isto é fruto de uma longa, mas muito longa, catequese que foi feita pela Igreja Católica, sobretudo na Idade Média. À época, simpatizava-se de modo especial com o sofrimento de Cristo, com a morte na cruz. Centralizou-se muito esse aspecto da cruz, no sentido de sofrimento, paixão e morte”, analisa Lino. “É uma catequese que se enraizou. Hoje em dia não é bem assim, mas ainda existem algumas visões a este respeito”.
O padre Gilson Soares, assessor para Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Nordeste 1 faz outra consideração. Ele sugere que há uma identificação popular, quase que natural, com o sofrimento.
“Nosso povo é um povo muito carente, sofrido, E é muito levado por quem sofre. Jesus Cristo é referência neste quesito. É claro que o essencial da Semana Santa é a Páscoa, nos deveríamos valorizar mais a Páscoa, porque nós deveríamos destacar em nós a vida nova. Afinal, Jesus venceu a morte. Mas, infelizmente, nosso povo é mais levado pelo sofrimento, pela devoção ao Senhor Morto, pelas missas de sétimo dia...”.
Este vocação para a dor é compreendida pelo padre Sartorel também como resquício histórico de outros tempos e práticas religiosas. “Na cabeça do nosso povo se infiltrou a ideia de que o pecado deveria ser pago com a dor e o sofrimento ser recebido como castigo merecido. Ao longo dos muitos séculos de história, o Cristianismo se implantou como a religião do sofrimento e do sacrifício, do Deus que castiga, quando deveria ser a religião da alegria, da esperança e da vida nova”. observa.
MUDANÇA
Se o passado responde pelo peso e apego à agonia, o futuro acena com leveza e fruição da vida que se refaz. É o que vislumbram os quatro padres ouvidos pelo O POVO nesta reportagem.
Para todos eles, há sinais claros de valorização da Ressurreição, desdobramentos da reforma litúrgica que começou com o Concílio Vaticano II e que encontram no papa Francisco um entusiasta. Ainda que a mudança efetiva demore pelo menos algumas décadas, ela já está em curso.
“Deus é o criador da vida não pode se deixar derrotar pela morte. Assim também nós fazemos parte de sua vitória. Esse esforço nasce da condição profunda da vitória da vida. É isso que nós queremos anunciar hoje. Ficar só lamentando, só chorando o sacrifício não leva à salvação nenhuma, quem nos salva é a Ressurreição”. reforça padre Lino.
Padre Sartorel atenta para uma pequena epifania a respeito de Paixão e Ressurreição escondida sutilmente nos evangelhos. “A última palavra não é morte. É vida. E isso diz tudo”.
Se a fé na ressurreição de Jesus é o sustentáculo do Cristianismo, de onde vem o apego à Paixão?
No primeiro dia da semana, de manhã bem cedo, as mulheres levaram ao sepulcro as especiarias aromáticas que haviam preparado. Encontraram removida a pedra do sepulcro, mas, quando entraram, não encontraram o corpo do Senhor Jesus. Ficaram perplexas, sem saber o que fazer. De repente, dois homens com roupas que brilhavam como a luz do sol colocaram-se ao lado delas. Amedrontadas, as mulheres baixaram o rosto para o chão, e os homens lhes disseram: ‘Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui! Ressuscitou!. Lembrai-vos de como ele vos disse, quando ainda estava na Galileia: O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores e crucificado, mas ressuscitará ao terceiro dia’”
Evangelho de Lucas, 24, 1-7
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