Jefferson Puff - @_jeffersonpuff
Em meio às mortes do médico Jaime Gold, de 57 anos, esfaqueado por assaltantes na Lagoa Rodrigo de Freitas, e dos jovens Wanderson Jesus Martins, de 24 anos, e Gilson da Costa Silva, de 13 anos, durante operação policial no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, o Rio de Janeiro assiste perplexo a uma onda de esfaqueamentos, latrocínios e o retorno das guerras de facções, que na semana passada deixaram 12 mortos em morros próximos ao bairro turístico de Santa Teresa.
A pergunta entre muitos cariocas agora é: a violência voltou a sair do controle na cidade?
Chocante pela brutalidade, já que, segundo testemunhas, a vítima do crime na Lagoa não teve oportunidade de defesa nem reagiu, o caso do médico teve repercussão nacional e somou-se à uma onda recente de más notícias para a segurança pública carioca.
Nas últimas semanas, a cidade registrou quatro esfaqueamentos somente na Lagoa e mais de dez em diferentes partes do Centro, e, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, só nos primeiros quatro meses deste ano apenas quatro emergências de grandes hospitais públicos registraram 167 ferimentos à faca.
Além do reflexo imediato sobre a vida dos cariocas, o crime ocorrido num dos bairros mais nobres do Rio impacta a imagem internacional da cidade, que dentro de pouco mais de 450 dias sediará as Olimpíadas - além de famoso cartão postal, a Lagoa será palco de competições olímpicas.
Já as mortes no Morro do Dendê chocam pela manutenção da lógica de operações policiais em favelas que acabam com mortes de civis, enquanto o envolvimento de adolescentes nos assaltos traz à tona o debate sobre a redução da maioridade penal, atualmente em discussão no Congresso.
Fora do controle?
Consultados pela BBC Brasil, especialistas concordam que há uma tendência a ser monitorada nos esfaqueamentos e assaltos violentos registrados nas últimas semanas, e alertam para o uso de armas brancas, mas divergem quanto à gravidade do momento atual. Para alguns, trata-se de um esgotamento do sistema de segurança pública, que teria chegado ao seu limite, enquanto outros acreditam tratar-se de uma crise episódica.
Outros ainda opinam que o cenário atual é qualitativamente melhor do que o de oito anos atrás, período anterior à criação das UPPs. Eles também atentam para o contraste atual, em que o Estado do Rio de Janeiro apresenta redução do número de homicídios mas enfrenta crises no programa de pacificação e amarga casos muito simbólicos de mortes de civis, como o do menino Eduardo de Jesus, de dez anos, assassinado diante de casa no Complexo do Alemão, no dia 3 de abril.
"Estamos vendo novamente uma sequência grande de casos de balas perdidas, 50 homens do tráfico invadindo um morro pacificado no Centro do Rio, guerra de facção, esfaqueamentos. É claro que é um cenário nada tranquilo, mas em vista do passado, acho precipitado dizer que o controle foi perdido. Há oito anos havia armamento de guerra em todas as favelas", diz Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC).
Para o sociólogo João Trajano Sento-Sé, do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é difícil explicar o que motiva a onda de assaltos violentos com armas brancas, mas uma reorganização da economia do tráfico, com perdas de funções de menores, poderia ser um dos fatores.
Quanto ao uso de facas e a maioria de adolescentes por trás destes crimes, Sento-Sé diz ainda que se trata de um tipo de delito que não é mapeado de forma correta, mas que o governo precisa criar um plano de ação que seja ágil e eficiente tanto a curto como longo prazos.
"O que está se passando? Ninguém sabe ao certo. Assaltos com armas brancas foram historicamente negligenciados pelo governo. Agora estamos diante de um fenômeno que precisa ser entendido, e precisamos de políticas de segurança, saúde, educação, ordem pública, e não só de polícia”, avalia.
Mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e ex-capitão do Bope entre 1994 e 1999, Paulo Storani diz que a segurança pública no Estado vive uma situação de “esgotamento e colapso”.
"O modelo se esgotou. Não existe estrutura, efetivo suficiente, ou recursos financeiros que possam ser investidos. Faltam policiais e há um esgarçamento do limite máximo do sistema se segurança pública. O fato de os menores voltarem rapidamente à sociedade também não ajuda", indica.
Leia mais: 'Isolamento' e demora para entender riscos contribuíram para crise em UPPs, diz porta-voz
Em reação à grande repercussão do crime da Lagoa, o secretário de Segurança Pública fluminense, José Mariano Beltrame, disse tratar-se algo “inadmissível”. Já o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), admitiu falhas no policiamento, e prometeu reforços, mas teceu críticas ao Judiciário ao dizer que “não adianta polícia prender e depois um desembargador soltar”.
O presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, rebateu a crítica de Pezão por meio de nota. "Na verdade, não há relação de causalidade entre a morte trágica do ciclista, mais uma tragédia urbana, e a ação da Justiça. O que faltou, e isso é evidente pelo exame dos fatos, foi um policiamento ostensivo eficiente, que fosse preventivo e impedisse a barbárie”.
Vilões, vítimas e maioridade penal
Apreendido como um dos suspeitos pela morte do médico na Lagoa, um adolescente de 16 anos, morador da comunidade de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, deve tornar-se um dos símbolos da discussão em torno redução da maioridade penal.
Com 15 anotações criminais, sendo cinco delas com uso de armas brancas e a primeira ainda em 2010, o menino já havia sido internado em instituições para menores, mas teria voltado ao crime.
Yvonne Bezerra de Mello, educadora que há anos trabalha com crianças carentes e que ficou famosa quando alguns de seus alunos foram mortos na chacina da Candelária, em 2003, diz que o menor tem que ser punido, mas explica que há um contexto complexo nestes casos.
"Quem são estes meninos? O que os leva ao crime, qual é o perfil? São todos de famílias desestruturadas, violentas. Os poucos que vão à escola não têm bom aprendizado. Com 15 passagens policiais e diversas internações, este garoto não foi recuperado. Nada justifica esta morte, mas as coisas não são tão simples", diz.
Já o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, fez, na última quarta-feira, críticas ao fato de que muitos menores que são apreendidos pela polícia acabem sendo liberados pouco depois.
"Nós temos que fazer uma grande discussão com a sociedade. Dos 32 menores que estavam no Aterro do Flamengo recentemente, prendemos 31. Outro dia eles já estavam soltos. Se é para cumprir essa lei que está aí, nós temos que discutir o papel da polícia. A polícia tem feito o seu papel", disse.
Rio 2016
A morte de Gold ocorreu na manhã em que autoridades municipais e estaduais se reuniam com membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) e do Comitê Rio 2016 para reuniões periódicas de acompanhamento dos preparativos olímpicos. De acordo com o diretor executivo de Jogos Olímpicos do COI, Christophe Dubi, o episódio não abalou a confiança dos organizadores na segurança na cidade durante os jogos.
Dubi se mostrou confiante no planejamento de segurança para 2016 e na cooperação entre as três esferas de governo. Ele afirmou que escaladas de tensão e violência também antecederam jogos em outras capitais, como Atenas, e disse acreditar que a presença policial reforçada durante o evento permitirá que os Jogos transcorram em paz.
"O planejamento está seguindo o cronograma e o número de policiais destacados vão assegurar as celebrações e permitir que aqueles visitando as instalações olímpicas e áreas turísticas se sintam seguros e possam aproveitar o evento", afirmou Dubi à BBC Brasil.
Nesta quinta-feira, o Ministério da Defesa anunciou aportes de R$ 580 milhões para garantir a segurança dos Jogos. Os recursos federais deverão ser usados para a construção de um Centro Nacional Integrado, além de obras, treinamentos, e equipamentos para os 37 mil militares que devem atuar no Rio e em outras cinco cidades que sediarão competições de futebol.
* Colaborou Júlia Dias Carneiro, da BBC Brasil no Rio de Janeiro
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