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domingo, 17 de maio de 2015

BRASILEIRO PERCORRE CIDADE DESTRUÍDA QUE SE LIBERTOU DO ESTADO ISLÂMICO.


Fotógrafo Gabriel Chaim arriscou a própria segurança para descobrir como a vida continua nas áreas devastadas após conflitos no Oriente Médio.

Fonte:Fantástico
Estamos entrando em uma cidade - ou para ser mais preciso, no que restou dessa cidade. Ela se chama Kobane. Ela foi arrasada. O lugar é hoje apenas uma lembrança do que já foi um dia: edifícios destruídos, quase ninguém nas ruas.
Kobane é também uma cidade proibida. As milícias que controlam a região não permitem a entrada de jornalistas, mas um fotógrafo brasileiro conseguiu furar esse bloqueio.
“Eu tô percorrendo agora uma das áreas mais devastadas de toda Kobane, a destruição aqui é impressionante. É difícil acreditar que nesse local antigamente existia uma cidade”, diz Gabriel Chaim.
Gabriel Chaim arriscou a própria segurança para descobrir como a vida continua depois dos conflitos que nós apenas acompanhamos, muito de longe, pelos noticiários. Ele viu muito de perto. Imagens e histórias que não vamos esquecer.

Kobane fica na fronteira entre a Síria e a Turquia. No ano passado, tinha cerca de 350 mil habitantes. Hoje ninguém sabe ao certo quantos ainda insistem em ficar por lá, mas são poucos. Talvez 50 mil.
Esse foi o preço pago pelo povo que conseguiu expulsar os extremistas do Estado Islâmico, o grupo fanático religioso que se especializou em prender, torturar e degolar pessoas. Terroristas que já ocuparam várias cidades na região e fazem questão de exibir pela internet as atrocidades que praticam.
Depois de quatro meses de conflitos, andar por lá é enfrentar um campo minado.
Gabriel está acompanhando um esquadrão anti-bombas. É um trabalho arriscadíssimo. Eles buscam explosivos em casas abandonadas. Reviram tudo. Em uma casa havia um debaixo do cobertor. Uma geladeira também pode ser um esconderijo. O grupo encontra um carro. Ele estava cheio de botijões de gás usados em bombas caseiras.
Ahmed é o policial que comanda a operação. Ele encontra um receptor ligado aos botijões. O número na lateral indica que a bomba é acionada por um sinal de celular. Basta uma chamada pra aquele número e o carro explode. O Ahmed abre a bateria com cuidado e o dispositivo começa a pegar fogo.
“A bateria pegou fogo do nada e todo mundo correu. Felizmente foi só um susto, a bomba não explodiu. O Ahmed desconectou o cabo que ligava as bombas no exato momento em que pegou fogo. Ele com calma retirou todas as bombas que estavam escondidas no carro e separou”, relembra Gabriel.
“Fico feliz cada vez que desarmo uma mina. Sei que estou salvando a vida de um ser humano”, afirma Ahmed.
“Naquele momento, ele é o único profissional que entende daquele assunto, mas se você fizer uma comparação com o exército americano, ele não é profissional. Ele é um policial e livros que foram doados, ele aprendeu como desarmar uma bomba”, diz Gabriel.
O Ahmed guarda todos explosivos que encontra. Ahmed é um oficial da polícia curda, que toma conta da cidade. Os curdos vivem espalhados pela Turquia, Armênia, Irã, Iraque e Síria. Em Kobane, eles são a maioria.
Em setembro do ano passado, a cidade foi invadida pelos extremistas do Estado Islâmico. A maior parte da população de Kobane se refugiou na Turquia. Em janeiro, a coalizão formada pelos Estados Unidos bombardeou Kobane para expulsar os extremistas. Os curdos ganharam força conseguiram retomar o controle da região.
“As pessoas estão voltando as suas vidas normais, apesar da destruição e do medo”, conta Gabriel.
Medo porque o Estado Islâmico continua por perto.
“Saímos agora de Kobane, vamos fazer uma viagem de mais ou menos uma hora de carro, até chegar num front onde diariamente acontecem vários combates na parte que o Estado Islâmico controla. Na primeira trincheira, os soldados eram mulheres. Elas usavam um lenço colorido na cabeça, comum naquela região. O guia me avisou que o tempo que a gente podia ficar lá tinha acabado. Aí a gente seguiu viagem para outro front, no alto de uma colina”, conta Gabriel.
Os curdos atiram. E quem está do outro lado revida.
No caminho de volta para a cidade, Gabriel encontra uma casa que foi usada como base pelo Estado Islâmico. Vestígio de um passado recente, e muito sangrento.
“Uma das coisas que me impressionou foi uma mulher lavando roupa em meio aos escombros”, relembra Gabriel.
Gabriel Chaim: Você não tem medo de ficar aqui?
Moradora: Não tenho, a gente voltou para reconstruir tudo.
Em uma casa vive uma família de oito pessoas. Eles se refugiaram na Turquia durante a invasão, e voltaram pra Kobane há um mês. Sharifa mostra o que sobrou dos cômodos. A pequena Mirvin não estava lá durante os bombardeios, mas sente medo. Sharifa lembra com tristeza do tempo que ficou fora de Kobane.
“Quando a gente escutava as notícias, chorava muito. Cada mês passava como se fosse um ano. Quando voltei pra cá, agarrei um pouco de terra, cheirei e pensei 'essa é a terra dos meus pais'. Graças a Deus, cheguei”, conta Sharifa.
Na cidade devastada, a reconstrução é lenta. Só uma escola está funcionando. Os traços da guerra ainda são nítidos. Mas as crianças ainda são crianças. Na sala de aula, a língua oficial é o curdo. O menino sonha ser médico um dia. Mahmud conta que durante os confrontos se escondia em casa com medo dos terroristas.
O nome de Ahlam significa esperança. Durante os intensos ataques aéreos, era na mãe que ela buscava refúgio. “Quando ouvia as bombas pedia colo para a minha mãe”, conta a menina.
Crianças que brincam em um tanque de guerra abandonado. Talvez o símbolo mais comovente de uma saga retratada agora pelas lentes de um brasileiro. Gabriel passou um mês em Kobane, e foi preso quando tentava cruzar a pé a fronteira com a Turquia com outros jornalistas. Depois de uma semana, foi deportado pelo governo turco. Gabriel desembarcou no Brasil na quarta-feira (13) e pouco depois veio na redação do Fantástico.
“É como se fosse uma cidade fantasma”, ele afirma.
Não é a primeira vez que o Gabriel desafia o perigo. Em dezembro de 2013, o Fantástico mostrou imagens que ele fez em Aleppo, outra cidade síria destruída pela guerra. Ele também já esteve no Irã, na Faixa de Gaza e cobriu protestos no Egito.
“Acho que de todos os lugares que eu já estive, eles não chegam nem aos pés do conflito hoje na Síria. É o mais perigoso dos últimos 30 anos. Nós fomos presos no dia cinco, tentando atravessar a fronteira da Síria com a Turquia. Eu nunca tive a intenção de infringir uma lei, de ultrapassar fronteiras ilegalmente. Se você pegar 360 graus de Kobane, 180 tá sitiada pelo Estado Islâmico, os outros 180 pela Turquia. Porém a fronteira está fechada. Quando a gente começou a andar, a gente só escutou barulho de tiros. Dois tiros: ‘pá, pá’. Na hora que a gente foi preso, que chegou esse carro militar e eles nos levaram pro primeiro quartel militar, que aí começou os interrogatórios”, conta Gabriel.

Gabriel ficou três dias em um centro de detenção da imigração turca.
Gabriel Chaim, fotógrafo: Aí depois eles falaram com a gente, ‘vocês vão pra Ancara, que de lá vocês vão ser deportados’. Eles mandaram a gente pra uma prisão grande, com pessoas de todo o tipo. Inclusive membros do Estado Islâmico, mais ou menos uns 20.
Tadeu Schmidt: você teve contato com alguém Estado Islâmico, dentro da prisão?
Gabriel Chaim: No segundo dia, um deles fez um sinal tipo cortando o pescoço.
Tadeu Schmidt: Fez um sinal de ameaça pra você.
Gabriel Chaim: Ameaça.
Poliana Abritta: Você é um homem de 33 anos, novo, casado, tem dois filhos, deixa tua família no Brasil para fazer essa viagem extremamente perigosas. Você não tem medo?
Gabriel Chaim: Então, Poliana, na verdade eu tenho bastante medo. Só que com esses anos lidando com esse tipo de situação, eu aprendi a controlar meu medo. Essa sensação de morte em uma zona de conflito é verdadeira. Quantas e quantas vezes, eu consegui captar uma imagem muito forte, e eu ficava pensando comigo isso: ‘talvez essa tenha sido a minha última imagem’.
As últimas imagens em Kobane mostram um grupo cantando uma música em homenagem ao povo curdo. Isso foi uma colina nos arredores da cidade. No local que foi dominado pelo Estado Islâmico meses atrás, hoje existe uma bandeira do povo curdo.
Poliana Abritta: Qual é o seu próximo destino?
Gabriel Chaim: Eu vou voltar pro Iraque.
E no Iraque neste domingo (17), terroristas do Estado Islâmico assumiram o controle da importante cidade de Hamad. A população fugiu. Autoridades iraquianas disseram que vão mandar reforços para a região.
“É o meu trabalho né? Eu tenho que seguir em frente”, diz Gabriel.
As imagens registradas por Gabriel Chaim mostram um povo que teve seu passado destruído, que tem um presente em ruínas mas que ainda acredita em um futuro.
ENTENDA O CASO
O Estado Islâmico (também conhecido como ISIS ou ISIL) é um grupo terrorista que, por meio de uma interpretação radical do islamismo sunita, tem buscado o domínio sobre o Oriente Médio. Sua expansão militar foi muito rápida: desde a adoção do nome ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante), em abril de 2013, o grupo ganhou controle de grandes porções do Iraque e da Síria, bem como de áreas na Líbia e na Nigéria. Em 2014, seu principal comandante, Abu Bakr al-Baghdadi, anunciou a meta de criação de um califado (forma de governo na qual um só líder, que seria herdeiro do profeta Maomé, detém o poder político e religioso) global, sob seu comando.
Uma dissidência da Al-Qaeda, o grupo notabilizou-se pela eficiência militar e pelo uso sistemático da tecnologia e dos meios modernos de comunicação, publicando em redes sociais vídeos com alto padrão de produção nos quais executam supostos infiéis, que podem incluir ocidentais, cristãos e até seguidores de outras vertentes do islamismo. Decapitações e execuções em massa fazem parte dos seus métodos. A organização também tem se mostrado capaz de atrair militantes da Europa e da América.
A DISPUTA POR KOBANE
Localizada no norte da Síria, próximo à fronteira turca, Kobane estava sob controle curdo –o grupo étnico majoritário na região- desde 2012, como consequência da guerra civil no país. A cidade foi atacada pelo Estado Islâmico em outubro de 2014. Em sua ofensiva pela região, o grupo já havia capturado mais de 300 vilarejos curdos. A violência do Estado Islâmico contra esse grupo étnico já era conhecida: A Anistia Internacional relata que cerca de 150 adolescentes da cidade já haviam sido sequestrados e, no cativeiro, torturados por seis meses.
Com a aproximação do Estado Islâmico, milhares de habitantes deixaram a região de Kobane em direção à Turquia, muitas vezes tendo dificuldade para entrar no país vizinho. O governo turco tem um longo conflito com a população curda da região, que busca autonomia.
Durante mais de dois meses, a cidade de Kobane foi palco de intensas batalhas entre os militantes do Estado Islâmico e uma coalizão de defesa formada por exércitos curdos da Síria, Turquia e Iraque, com auxílio terrestre de forças rebeldes sírias e ataques aéreos da coalizão anti-Estado Islâmico liderada pelos Estados Unidos. No final de janeiro deste ano, a cidade foi recuperada. Em abril, o Estado Islâmico já havia sido virtualmente eliminado de toda a região de Kobane, embora ainda mantenha controle sobre vilarejos próximos.
A SITUAÇÃO DOS CURDOS
Os curdos são um grupo étnico que se espalha pelo norte da Síria, sul da Turquia, oeste do Irã e norte do Iraque. Sua população é estimada em cerca de 30 milhões de pessoas. Com forte sentimento nacionalista, mas sem domínio sobre nenhum Estado, a população curda já teve conflito com vários governos dos países por onde se encontra. Na Turquia, revoltas foram violentamente reprimidas durante o século 20, com milhares de mortes, e a população curda ainda hoje vive em constante tensão com o governo central. O PKK, importante facção armada separatista que auxiliou na libertação de Kobane, é considerado terrorista pela OTAN.
No Iraque, populações curdas foram massacradas pelo governo Saddam Hussein. No final da guerra Irã-Iraque, forças oficiais chegaram a despejar armas químicas numa ação que hoje é considerada genocida pela própria Justiça do país. Estima-se que 5 mil pessoas tenham morrido no ataque.
Na Síria, a repressão da identidade curda pelo governo Assad levou a conflitos mortais que se estenderam pelo século 21, como os confrontos na cidade de Qamishli, em 2004, que mataram cerca de trinta pessoas . Durante a guerra civil no país, iniciada no contexto da Primavera Árabe, os curdos tomaram controle de regiões ao norte do país, entre os quais o cantão de Kobane.

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